quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Marie Claire: Uma revista na guerra




Nem sempre a Moda consegue ser ligeira como uma toilette de férias.
Nem sempre as revistas que dela tratam podem minorar a angústia de quem as faz e de quem as lê.

Fundada em 1937 em França, a revista Marie Claire, hoje com várias edições internacionais, procurou que as parisienses passassem da melhor maneira possível os anos terríveis da ocupação alemã (1940-1944).

Manteve-se no seu posto, a dar conselhos de moda e de decoração, na percepção de que a beleza é ainda mais essencial quando tudo o mais falta e os corações escurecem.  No entanto, a dor e a incerteza estão lá,  como se pode ler neste editorial "L'Élan de l'Espoir". Estávamos então em Maio de 1940. Menos de um mês depois, as tropas de Hitler entraram, vitoriosas, em Paris.



domingo, 26 de janeiro de 2020

Moda Infantil: Quando nem tudo era azul ou cor-de-rosa





Foram as crianças quem protagonizou maiores transformações no vestuário do século XIX. Os meninos e as meninas da Belle Époque eram os que nós conhecemos dos primeiros postais ilustrados e das colecções de fotografias familiares preservadas pelas avós. As roupas que usavam eram só deles e tendiam a transformá-los em pequenos bonecos amorosos e sempre impecáveis, por maiores que fossem as tropelias.

Para as meninas era o vestido à inglesa, curto, largo, ajustado com uma faixa de seda ou cetim. Ao contrário das mamãs, às meninas era permitido usar o cabelo solto , encanudado ou entrançado, mas sempre coberto por um chapéu de feltro ou de palha, muito amplo.

Nos meninos, durante a primeira infância, o cabelo podia ser usado longo, a ponto de quase não se distinguir irmão e irmã. Recorde-se o retrato que o pintor Auguste Renoir fez do seu filho, o futuro realizador de cinema Jean Renoir, quando este não contava mais de 4 anos. Lá estão os cabelos longos, adornados com um laço branco.

Era, ao cabo de séculos, o reconhecimento da especificidade infantil.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Sua Alteza, o Príncipe de Gales



No século XIX, com revoluções e regicídios a abalarem meia Europa, as monarquias tiveram de fazer charme para sobreviver. Os seus membros passaram a ser mais do que efígies nas moedas e começaram a ser fotografados e vistos em família, em revistas e postais ilustrados. Tornaram-se, entre outras coisas, ícones de Moda e personificações de um lifestyle a que o comum súbdito só podia aspirar.
No auge do Império Britânico, dois Eduardos, o sétimo e o oitavo do nome, avô e neto, deram nome ao fato "Príncipe de Gales", ainda hoje um clássico da Moda masculina. A ideia era manter a elegância na cidade como no campo, no Verão como no Inverno, mostrar descontracção sem parecer -oh, my God - que se trabalhava. Eduardos à parte, o melhor embaixador desta indumentária foi um homem sem pedigree. Chamava-se Cary Grant e o seu reino era feito de cinéfilas extasiadas.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O azul é o céu das morenas - Dress to Impress

"Dress to Impress" foi o lema da Rainha Isabel I de Inglaterra. Embora em privado ela preferisse vestidos simples e fosse capaz de o usar durante dois ou três dias, em público glosava esse tema. As roupas eram um importante sinal exterior de estatuto para os isabelinos e não lhes passava pela cabeça que alguém não se vestisse de acordo com a classe social a que pertencia. Assim sendo, a Rainha tinha de ser a mais majestosa das mulheres.
  Se uma dama da Corte tinha a imprudência de usar um vestido mais belo do que o da Rainha, era tão severamente admoestada como se tivesse incorrido num incidente diplomático. Na verdade, elas sabiam qual era o seu papel em matéria de guarda-roupa: complementar rica, mas humildemente, o visual escolhido por Isabel. Nos últimos anos de vida dela, era-lhes pedido que optassem por vestidos simples, de uma única cor, geralmente branco ou prateado.
  Ao que dizem a maior parte dos (muitos) biógrafos, a paixão de Isabel pela moda teve as suas raízes na infância, quando a sombra da execução da mãe e da sua alegada bastardia a afastou da maior parte dos luxos a que, noutras circunstâncias, tinha acesso uma princesa de sangue real (a tal ponto que uma das suas aias ousou enfrentar o cruel monarca, pedindo-lhe que se condoesse da situação da menina). Este arremedo de psicanálise não explica tudo.
  Na verdade, Isabel I, mais do que qualquer homem seu contemporâneo, era um animal político e cedo percebeu  que a majestade no vestir é parte fundamental do espectáculo que a realeza tem de ser, antecipando em várias décadas aquilo que o Rei-Sol, Luís XIV,faria na França do século XVII

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Onde se fala de Junot e das Manas Perliquiteques

As Manas Perliquiteques. Fotografia de Joshua
Benoliel

O guarda-roupa é elemento fundamental para a caracterização da personagem real ou fictícia. Não admira, por isso, que muitas das personagens mais populares da História das cidades tenham sido fixadas também pelas particularidades da indumentária.

Conforme podemos ler no precioso Dicionário das Alcunhas Alfacinhas, Lisboa não foi excepção a esta regra. Andoche Junot, o General íntimo de Napoleão que comandou a primeira invasão francesa em Portugal, era também conhecido, nas suas andanças lisboetas, como "o botas de veludo" mas não faltaram outros tipos como "o petit janota", "o sapateirinho da Bica", "o veste saias", o "avô dos janotas" ou o "barão das chitas".

Famosas pelo guarda-roupa com que se passeavam em Lisboa na segunda metade do século XIX foram as Manas Perliquiteques. Nascidas numa família de ricos comerciantes, as irmãs Carolina Amália e Josefina Adelaide morreram solteiras e na penúria. O cruel Chiado não deixou de notar o contraste entre as suas dificuldades e o aprumo cada vez mais fora de moda com que se vestiam. Deu-lhes o nome de Manas Perliquiteques que, muitos anos depois, ainda designava quem se vestia com demasiada cerimónia para a ocasião ou para as suas posses.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Workshop Introdução à História Social da Moda


Workshop
Dia 7 de Março, das 10 às 16.30
Hotel Ibis Saldanha, Lisboa




Considerada muitos anos uma rubrica meramente decorativa, a História Social da Moda começa a adquirir autonomia científica. Neste workshop de introdução ao tema, analisaremos alguns períodos históricos em que a Moda, mais do que um reflexo da sociedade, foi um dos motores da sua transformação.
Preço: 40 euros

Inscrições sujeitas ao limite de lugares na sala

Maria João Martins, jornalista, escritora. é professora convidada da Universidade Carlos III de Madrid, onde prepara a sua dissertação de doutoramento sobre História Comparada de Moda de Portugal e Espanha.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Moda e Política - A identidade das Princesas





As vidas das verdadeiras princesas nunca se pareceram muito com os filmes da Disney. Embora nem todas acabassem com a cabeça no cepo como Maria Antonieta, evocada neste filme de Sofia Coppola, as suas vidas eram jogadas nas Chancelarias como peças num tabuleiro de xadrez. Quando uma princesa austríaca, mal acabada de sair da infância, se tornava Delfina de França esperava-se que ela deixasse para trás a sua identidade familiar e nacional para se tornar francesa. O mesmo era válido para espanholas, portuguesas, alemãs ou inglesas.
Tal transformação passava também pela Moda. Mesmo que nem todas fossem sujeitas a um ritual humilhante como o que aqui se vê, era esperado que a sujeição aos figurinos em voga na Corte a que chegavam fosse parte integrante da mudança de papel e, sobretudo, de lealdades. Quando a francesa Isabel de Valois se tornou na terceira mulher de Filipe II de Espanha (I de Portugal) rapidamente trocou os garridos trajes que trouxera de Paris pela austeridade de formas e cores que era apanágio dos Áustria ibéricos. O que parece ter desagradado bastante à sua própria mãe, Catarina de Médicis, que esperava fazer dela um instrumento dos interesses franceses na política de Filipe. Quando, após anos de separação, as duas se reencontraram, a Rainha de França não conseguiu disfarçar o desagrado pelo que via, dizendo a Isabel: "Vens muito espanhola!"

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O azul é o céu das morenas - Moda e Poder



“I hope she'll be a fool," she says, "that's the best thing a girl can be in this world, a beautiful little fool." 
Daisy Buchanan sobre a filha Pammy, The Great Gatsby;


“É um mundo de homens”, diz a canção de James Brown. “Mas isso nada significa sem o amor de uma mulher.” Durante séculos, o poder do sexo feminino foi, afinal, um não poder. Não se jogava nas chancelarias ou nas empresas, mas entre a cozinha e o boudoir. Dependia da capacidade de cada uma para cuidar ou de seduzir os homens com que se relacionava. Às vezes com a arte de dissimular a inteligência e a cultura como os bandidos ocultam navalhas nas botas. Em plena década de 1920, o escritor norte-americano Scott Fitzgerald punha as palavras acima citadas na boca de Daisy Buchanan, a protagonista feminina de The Great Gatsby. Num mundo hostil às mulheres, o melhor que ela poderia esperar é que a criança se transformasse numa tola bonita. Alguém que conseguisse uma vida confortável graças ao bom aspecto.

A Moda e a Cosmética são, por isso, instrumentos políticos e acessórios económicos, pelo menos, desde os tempos de Cleópatra. Frases feitas como “Os homens preferem as louras” ou “o azul é o céu das morenas” baseiam-se justamente nesse princípio com uma longevidade extraordinária.

Recuemos ao século XIX. Envolta apenas num mantón de Manila negro, com guarnição a prata, a bailarina Lola Montes adverte o seu amante, Luís I, rei da Baviera, sobre as incertezas das monarquias na Europa de oitocentos.

 - O nosso trabalho tem muito em comum, Majestade. Ambos vivemos de encantar osoutros,mesmo que tenhamos de nos reinventar durante a maior parte do tempo. 

Lola sabia do que falava porque ninguém, nessa Europa em acelerada mudança, combinava em dose tão explosiva imaginação, adaptabilidade às circunstâncias, sensualidade, mitomania, sensualidade e muito descaramento. Isto porque, antes de mais, Lola Montes não existia. Era uma invenção de Maria Dolores Eliza Roseanna Gilbert, filha de um oficial do exército britânico instalado em Limerick, Irlanda.




domingo, 12 de janeiro de 2020

A imprensa de moda no pós-25 de Abril






"Uma nova vida, um novo Modas", assim prometia o título da revista Modas e Bordados no primeiro número publicado no pós-25 de Abril de 1974. Fundada em 1912, a publicação, propriedade da mesma empresa que editava o jornal O Século, não sobreviveu muito em Democracia, mas tornou-se um marco da Imprensa feminina e de Moda no nosso país. 
Outros títulos foram surgindo, ao longo da década de 80, como a Moda & Moda; Colecções;  a Marie Claire, a Elle e a Máxima. As duas últimas, felizmente, continuam a ser publicadas na actualidade.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Marlene, atiraste as saias ao ar



Marlene Dietrich (1901-1992) não foi apenas mais uma estrela de cinema.
Para a Hollywood dos anos 30, levou um conceito europeu de sofisticação. Sofisticação e mistério. Mistério e sedução.
A tradicional androgenia dos cabarets berlinenses chegava, assim, ao grande écran, quando ela vestia (e bem) smokings ou fatos de corte masculino. As espectadoras adoraram e, para escândalo dos mais conservadores, globalizaram a moda. Nos salões como nas fábricas.
Portugal não foi excepção. Em 1933, na revista à portuguesa "Pernas ao Léu", a actriz Irene Isidro cantaria o número "Marlene, atiraste as saias ao ar." O êxito foi imediato.


domingo, 5 de janeiro de 2020

O impacto das telenovelas brasileiras na Moda




Em Portugal, o pecado não morava ao lado. As viúvas amortalhavam-se atrás de um lenço preto para o resto das suas vidas (e a Guerra Colonial “produziu” tantas e tão novas) e o casaco de malha, sem forma, constituía um sinal exterior de auto-infligidas modéstia e penitência. Em 1977, a produção da Rede Globo de Televisão, Gabriela, Cravo e Canela, transmitida pela RTP, tomou de assalto uma sociedade a que o escritor brasileiro Antônio Torres chamara “o país dos homens dos pés redondos”, paisagem humana onde não só a televisão era a preto e branco. De Norte a Sul, do Parlamento ao mais remoto monte alentejano, a telenovela brasileira surpreendeu tudo e todos, não apenas com uma nova forma de representar e contar uma história no pequeno écran, mas também com outros modos de viver a sensualidade e o corpo. Gabriela foi uma explosão de erotismo e liberdade no horário em que, poucos anos antes, se viam e ouviam as “Conversas em Família” de Marcello Caetano ou os telejornais retalhados pela Comissão de Censura, Da paixão ao mimetismo da linguagem, das atitudes e do vestuário das personagens mais carismáticas não demorou muito. Num tempo em que escasseavam as revistas femininas (a mais popular era a Crónica Feminina, muito tradicional nas suas opções) e num país sem industria de moda digna desse nome (Ana Salazar começaria a afirmar-se junto da classe média alta no final dos anos 70 e os restantes criadores, mais tradicionais, trabalhavam apenas para as elites) só a Televisão tinha capacidade de sugerir consumos á classe média, nomeadamente à juventude. Em breve, veremos as raparigas das escolas a comprarem réplicas do crucifixo da Escrava Isaura ou do brinco em forma de raio ou da bolsa de franjas usada por uma muito jovem Glória Pires na telenovela Água Viva. Um breve olhar pelas publicações da época demonstrará que, graças à novela Dancin' Days, marcas brasileiras como os jeans Staroup entrarão pela primeira vez no nosso país, prometendo aos seus potenciais compradores o charme das noites cariocas, as mesmas onde se movimentavam Cacá (Antonio Fagundes) e Julia (Sónia Braga), com os seus soquetes de lurex colorido, bem à vista sob as sandálias vermelhas de salto, e top minúsculo. 




sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O Caso do Vestido por Carlos Drummond de Andrade

Habitualmente inicio os meus workshops sobre Moda e Literatura com este poema do brasileiro Carlos Drummond de Andrade, em que o vestido é muito mais do que um adereço.



 
 
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: - Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

A atracção das alturas





Não há em todo o closet feminino peça que desperte mais polémica ou mais ardente paixão. Moda é comunicação, sabemos, mas, no caso dos sapatos de salto alto, há centenas de mensagens implícitas, transmitidas a homens, mulheres e crianças, que estão longe de gerar consenso mesmo entre as feministas. Quem é a mulher que sai à rua de saltos altos? O que nos diz ela, sabendo, de antemão, que fica mais alta, mais esguia, o peito e os glúteos imediatamente mais tensos por causa da posição que é obrigada a adoptar para manter o equilíbrio? Uma fashion victim, enclausurada em estereótipos arcaicos, ou uma dominadora que, graças a esses centímetros extra, toma uma consciência nova do seu corpo e do mundo? Uma combatente do exército urbano que faz soar os seus saltos na calçada do mesmo modo marcial que os batalhões conquistadores usam as botas de aço?

Há pouco mais de dez anos, o parlamento italiano foi agitado por uma discussão entre uma deputada de centro-direita e os seus colegas da ala esquerda, em que até os stilletos da primeira vieram à baila. Os segundos acusavam-na de defender o regresso da sujeição feminina aos fantasmas eróticos do macho predominante. Ao que ela contrapôs com a segurança extra que os saltos altos e finos conferiam à mulher que queria afirmar-se no palco da política ou do mundo empresarial. Imobilista e reaccionária, dizia, era essa esquerda que continuava refém do guarda-roupa de Maio de 68 caracterizado por calças unissexo e saltos rasos.

Tal discussão poderia durar eternamente sem conclusão à vista. A verdade, porém, é que, numa época em que a indumentária masculina rivalizava com a coquetterie da feminina, Luís XIV de França não dispensava os sapatos de salto alto na elaborada encenação do seu monárquico brilho. Não bastavam os veludos ricos, as sedas de cores exóticas, a construção de Versalhes. Aqueles centímetros extra, dir-se-ia, elevavam-no acima da sua mortal condição e, factor não despiciendo, também da imundice da capital. Tal como faziam as ricas cortesãs de Veneza, a quem os chapins de plataforma impediam de sujar o gentil pezinho nos pouco recomendáveis canais da Sereníssima cidade.
A sedução do poder, o poder da sedução – eis as chaves que explicam esta atracção pelas alturas, recuperada pelas grandes divas do Cinema, quando, nas décadas de 40 e 50, o italiano Salvatore Ferragamo fez calçar stilettos a sex symbols como Marilyn Monroe, Ava Gardner ou Anna Magnani. O corpo tenso, por causa dos saltos, melhorava-lhes extraordinariamente a postura e alterava-lhes o andar, tornando-o mais bamboleante e sensual. Incapazes de se moverem com agilidade e rapidez, dirão a propósito as feministas dos idos de 60. Muito mais seguras de si, argumentarão as que passam a vida a sonhar com um par de Manolos (por alusão ao designer espanhol Manolo Blahnik), Jimmy Choo’s ou Loubotin’s. As que viram na obsessão de Carrie Bradshaw, de Sexo e a Cidade, pelos primeiros, um prolongamento de si mesmas.
Na origem da irresolúvel controvérsia está também o papel que os sapatos de salto alto e fino desempenham num certo erotismo fetichista. A Neurologia ajuda a explicar esta percepção: nos pés concentram-se tantas terminações nervosas que difícil será não os incluir na cartografia das zonas erógenas.
Mas o som dos saltos na calçada ou no soalho de madeira tem também, em muitos de nós, o poder de despertar a memória de um passado há muito perdido. De tão associados a uma imagem requintada de feminilidade, evocam frequentemente a mãe ou a avó que perdemos há  muito, com uma eficácia só igualada pelo derradeiro vestígio de perfume conservado numa gaveta. Por causa disso, Pedro Almodóvar deu a uma pungente história de mães e filhas o título de Saltos Altos.