Não há em todo o closet
feminino peça que desperte mais polémica ou mais ardente paixão. Moda é
comunicação, sabemos, mas, no caso dos sapatos de salto alto, há centenas de
mensagens implícitas, transmitidas a homens, mulheres e crianças, que estão
longe de gerar consenso mesmo entre as feministas. Quem é a mulher que sai à
rua de saltos altos? O que nos diz ela, sabendo, de antemão, que fica mais
alta, mais esguia, o peito e os glúteos imediatamente mais tensos por causa da
posição que é obrigada a adoptar para manter o equilíbrio? Uma fashion victim, enclausurada em
estereótipos arcaicos, ou uma dominadora que, graças a esses centímetros extra,
toma uma consciência nova do seu corpo e do mundo? Uma combatente do exército
urbano que faz soar os seus saltos na calçada do mesmo modo marcial que os
batalhões conquistadores usam as botas de aço?
Há pouco mais de dez anos, o parlamento italiano foi agitado
por uma discussão entre uma deputada de centro-direita e os seus colegas da ala
esquerda, em que até os stilletos da
primeira vieram à baila. Os segundos acusavam-na de defender o regresso da
sujeição feminina aos fantasmas eróticos do macho predominante. Ao que ela
contrapôs com a segurança extra que os saltos altos e finos conferiam à mulher
que queria afirmar-se no palco da política ou do mundo empresarial. Imobilista
e reaccionária, dizia, era essa esquerda que continuava refém do guarda-roupa
de Maio de 68 caracterizado por calças unissexo e saltos rasos.

Tal discussão poderia durar eternamente sem conclusão à
vista. A verdade, porém, é que, numa época em que a indumentária masculina
rivalizava com a coquetterie da
feminina, Luís XIV de França não dispensava os sapatos de salto alto na elaborada
encenação do seu monárquico brilho. Não bastavam os veludos ricos, as sedas de
cores exóticas, a construção de Versalhes. Aqueles centímetros extra,
dir-se-ia, elevavam-no acima da sua mortal condição e, factor não despiciendo,
também da imundice da capital. Tal como faziam as ricas cortesãs de Veneza, a
quem os chapins de plataforma impediam de sujar o gentil pezinho nos pouco
recomendáveis canais da Sereníssima cidade.
A sedução do poder, o poder da sedução – eis as chaves que
explicam esta atracção pelas alturas, recuperada pelas grandes divas do Cinema,
quando, nas décadas de 40 e 50, o italiano Salvatore Ferragamo fez calçar stilettos a sex symbols como Marilyn
Monroe, Ava Gardner ou Anna Magnani. O corpo tenso, por causa dos saltos,
melhorava-lhes extraordinariamente a postura e alterava-lhes o andar,
tornando-o mais bamboleante e sensual. Incapazes de se moverem com agilidade e
rapidez, dirão a propósito as feministas dos idos de 60. Muito mais seguras de
si, argumentarão as que passam a vida a sonhar com um par de Manolos (por
alusão ao designer espanhol Manolo Blahnik), Jimmy Choo’s ou Loubotin’s. As que
viram na obsessão de Carrie Bradshaw, de
Sexo e a Cidade, pelos primeiros, um prolongamento de si mesmas.
Na origem da irresolúvel controvérsia está também o papel
que os sapatos de salto alto e fino desempenham num certo erotismo fetichista.
A Neurologia ajuda a explicar esta percepção: nos pés concentram-se tantas
terminações nervosas que difícil será não os incluir na cartografia das zonas
erógenas.
Mas o som dos saltos na calçada ou no soalho de madeira tem
também, em muitos de nós, o poder de despertar a memória de um passado há muito
perdido. De tão associados a uma imagem requintada de feminilidade, evocam
frequentemente a mãe ou a avó que perdemos há
muito, com uma eficácia só igualada pelo derradeiro vestígio de perfume
conservado numa gaveta. Por causa disso, Pedro Almodóvar deu a uma pungente
história de mães e filhas o título de Saltos
Altos.